“Difícil é lidar com donos da verdade. Não há dúvida de que todos nós nos apoiamos em algumas certezas e temos opinião formada sobre determinados assuntos. Isso é inevitável e necessário. Se somos, como creio que somos, seres culturais, vivemos num mundo que construímos a partir de nossas experiências e conhecimentos. Há aqueles que não chegam a formular claramente para si o que conhecem e sabem, mas há outros que, pelo contrário, têm opiniões formadas sobre tudo ou quase tudo. Até aí nada demais. O problema é quando o cara se convence de que suas opiniões são as únicas verdadeiras e, portanto, incontestáveis. Se ele se defronta com outro imbuído da mesma certeza, arma-se um barraco. De qualquer maneira, se se trata de um indivíduo qualquer que se julga dono da verdade, a coisa não vai além de algumas discussões acaloradas, que podem até chegar a ofensas pessoais. O problema se agrava quando o dono da verdade tem lábia, carisma e se considera salvador da pátria. Dependendo das circunstâncias, ele pode empolgar milhões de pessoas. (...) As pessoas necessitam de verdades e, se surge alguém dizendo as verdades que elas querem ouvir, adotam-no como líder ou profeta e passam a pensar e agir conforme o que ele diga (...) não cansamos de nos espantar com a reação, às vezes sem limites, a que as pessoas são levadas por suas convicções. E isso me faz achar que um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. (...) prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas inquestionáveis.” Esse é um trecho do texto O Benefício da Dúvida, escrito pelo poeta Ferreira Gullar lá em 2006. Cai como uma luva nestes dias de donos da verdade em cada post, cada tuíte, cada matéria de jornal, não é? Não se engane, viu? Esses donos da verdade só são donos da própria ignorância. E ao bradar “ciência, ciência, ciência!”, tornam-se prestidigitadores de palavras e dados. Eles usam a pobre ciência como aquele crachá do Bozó, o inesquecível personagem de Chico Anísio, criando uma pandemia de ignorância emocional. Não se discutem fatos, mas interpretações. A verdade depende de quem diz. Tudo virou torcida. Como muitos têm lábia, carisma e se consideram salvadores da pátria, é por isso mesmo que são perigosos.See
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